A Cerca Nova concluída em 1370 durante o reinado de D. Fernando, tem a particularidade de ir muito para além do núcleo primitivo da Morro da Sé, abrangendo um território que ia do rio ao Olival e das Virtudes à Batalha. A inclusão do Morro da Vitória dentro do perímetro da muralha, do outro lado do Rio da Vila, poderá ter justificações de vária ordem, tais como urbanísticas, políticas ou militares. Em qualquer um dos casos, a verdade é que até aos séculos XIV e XVI, estas bandas não passariam de arrabalde da cidade, onde, por ordem de D. João I foi instalada, em finais do século XIV, a comunidade judaica. Em 1485, a Câmara para evitar a expansão do surto de peste, mandou entaipar a então Rua do Olival, assumindo a partir de então o topónimo Taipas. É a partir dos séculos XVI e XVII que se começa a assistir ao desenvolvimento urbano deste morro, tendo contribuído para tal a instalação de equipamentos como o Mosteiro de S. Bento da Vitória. Quando chegamos ao século XVIII vamos encontrar já aí instalada a grande burguesia do Porto mercantilista. Nas memórias paroquiais de 1758 refere-se que «Esta freguesia [da Vitória] foi o local escolhido para residência de importantes famílias que viviam na cidade, onde mandaram construir as suas casas, algumas das quais das mais «nobres» que existiam no Porto». A inexistência de licenças e plantas e no Arquivo Histórico não nos permite datar com precisão a data de edificação do conjunto. Atendendo à evolução histórica do lugar, conforme acima descrita, podemos conjeturar de que estamos perante exemplares de casas burguesas edificadas nos séculos XVII e XVIII, sem excluirmos a hipótese de alguns componentes remontarem a séculos anteriores. O alçado do conjunto, orientado para rua das Taipas apresenta elementos decorativos e funcionais – «cachorros» sob as varandas e «gárgulas» de escoamento de águas pluviais – que parecem confirmar a nossa hipótese. O alçado da Rua da Vitória é bem representativo das soluções construtivas típicas no norte do país durante o século XVII, que geralmente tiravam proveito de diferentes materiais e técnicas. Estas casas de ressalto, com os pisos superiores a avançarem sobre a rua são construídas em alvenaria de granito ao nível do rés-do-chão e nos pisos superiores em taipa de rodízio. No interior dos edifícios ainda é possível encontrar elementos construtivos representativos da época, nomeadamente a já referida taipa em rodízio, mas também o tecto com caixotões de madeira e alguns elementos de alvenaria trabalhada. Estes edifícios sofreram alterações significativas até à atualidade, incluindo a abertura de passagens interiores que os unificaram, a alteração das caixas de escadas (provavelmente durante o século XIX) e o acrescento de alguns elementos, sendo que ainda é possível, no entanto, distinguir a identidade arquitetónica de cada um deles. A proposta teve por base os antecedentes históricos e a caracterização física dos edifícios, os quais apresentavam problemas estruturais graves. Ao longo do tempo foram feitas alterações, como a introdução de pavimentos em betão sobre os vigamentos de madeira. A entrada de águas pelas coberturas e janelas é outro dos motivos para que o edifício ter vindo a degradar-se, quase até à ruína. Apesar do mau estado de conservação de alguns dos seus elementos, pretendeu-se com a proposta apresentada, reabilitar a sua estrutura existente, nomeadamente vigamentos em madeira e paredes autoportantes de alvenaria de pedra de granito. Os elementos decorativos em médio estado de conservação foram preservados e reabilitados. A união dos edifícios resolve o acesso vertical, reabilitando a escada principal do edifício orientado para a Rua das Taipas, tornando este o único acesso e permitindo, no edifício de menor dimensão, criar uma tipologia mais agradável, com acesso a elevador e escada. Também a clarabóia foi reposta, devolvendo a importância que esta escada teve outrora. A proposta manteve ainda as funções originais dos edifícios: habitação e comércio. As tipologias variam entre os apartamentos do tipo T0 ao T2 e são distribuídos ao redor da caixa de escadas. Foi ainda inserido um elevador de forma a facilitar o acesso aos pisos superiores. Os alçados foram mantidos com algumas alterações no alçado lateral orientado para a rua da Vitória, nomeadamente na parte dos avançados. Estas alterações estão relacionadas com um redesenho de parte do alçado e redimensionamento de novos vãos. Os vãos originais eram de pequena dimensão, o que dificultava a iluminação e ventilação dos espaços interiores. O desenho, no entanto, foi feito tendo em atenção a envolvente e a dimensão proposta respeita o edificado original. Relativamente aos restantes elementos dos alçados, estes foram reabilitados, a própria caixilharia é em madeira pintada com desenho igual ao original. Foram retirados os elementos dissonantes, como estores em PVC entre outros elementos existentes e que não fazem parte da construção/imagem original.
A imagem da cidade do Porto aparece muito associada ao granito pela expressividade que este material empresta aos seus edifícios históricos. A verdade é que a arquitectura tradicional do Porto tem um outro material que, apesar de mais discreto que o granito, é um dos seus elementos mais típicos: a madeira. Com efeito, a madeira está presente nos edifícios históricos desde da estrutura da cobertura, até ao vigamento horizontal e soalho, passando pela caixilharia, pelas paredes interiores em tabique e caixas de escadas. A sermos justos teríamos de reconhecer que o empresta o carácter único à arquitectura burguesa portuense é a madeira através dos seus múltiplos usos. Em situações excepcionais – e cada vez mais raras por causa das intervenções mais destrutivas – a madeira assume o protagonismo normalmente dado ao granito e permite-se à função de parede exterior através da técnica do tabique frontal, um esqueleto em madeira preenchido com tijolo ou outro material. Trata-se de um estratagema que permite aumentar o número de pisos sem sobrecarregar a estrutura do edifício e, em alguns casos, permite ainda avançar sobre a rua e ganhar área útil, assumindo uma configuração em socalcos em que os pisos superiores vão aumentando progressivamente a área disponível relativamente aos pisos inferiores. Deste sistema construtivo de elevada complexidade sobrevivem no Porto poucos edifícios. Este conjunto situado no gaveto Rua da Taipas / Rua da Vitória chegou até ao século XXI em muito mau estado por falta de manutenção. A estrutura de madeira original apresentava um elevado grau de degradação, o que ditou a decisão de substituir uma parte significativa desta (cerca de 60%) por novos elementos em madeira que replicaram as técnicas tradicionais em tabique frontal. Assinale-se, no entanto, que as vigas que suportam a estrutura horizontal foram integralmente reaproveitadas, mantendo a função original, sendo apenas reforçadas com a adição de vigas suplementares também elas em madeira. Deste modo, foi possível compatibilizar os elementos sobreviventes da estrutura original , como novos elementos de substituição ou de reforço. Como testemunho deste processo de reabilitação, algumas secções ficaram expostas, exibindo a nova estrutura inspirada nas técnicas tradicionais.
Este imóvel é um retrato da evolução urbana e dinâmicas demográficas da cidade do Porto. Historicamente trata-se de uma zona de urbanização algo tardia, quando comparado com o morro da Sé e somente a partir do século XVIII é que adquire um cunho burguês e se afirma como uma zona de comércio e residência de extratos sociais mais elevados. Com a industrialização a pressão da procura leva a que estes edifícios sejam ocupados por várias famílias e, provavelmente, já durante o século XX, ocorrem operações informais de emparcelamento unindo os prédios entre si, de forma a tirar o máximo proveito da área disponível para albergar o maior número possível de famílias. Noutros pontos da cidade, esta dinâmica deu origem às «ilhas», mas neste caso concreto, em virtude da configuração dos próprios prédios, o resultado foi mais próximo daquilo a que no brasil se chamou de «cortiço». Já no final do século XX, o prédio foi-se esvaziando dos seus habitantes até ter ficado completa devoluto, entrando num processo de degradação acelerado, chegando, inclusive a atingir o ponto crítico de ruína.
Este processo envolveu uma metodologia complexa com a incorporação dos contributos de vários intervenientes orientados pelo fio condutor da arquitectura. Uma vez definido o programa pelo promotor, foram efectuadas diligências junto arquivo histórico a fim de recolher toda a informação e documentação disponível sobre o imóvel e, em simultâneo, iniciaram-se os trabalhos de inspecção e diagnóstico da estrutura e matérias. A recolha desta informação permitiu aos projectistas moldar o programa ao potencial do próprio edifício. As tomadas de decisão de projecto procuram o equilíbrio entre os princípios programáticos veiculados pelo promotor e a preservação dos métodos construtivos e materiais existentes. Em algumas situações, a informação recolhida serviu mesmo de base para a reconstrução de elementos estruturais em madeira replicando as técnicas tradicionais (como, por exemplo, o tabique fasquiado). Outra componente da metodologia seguida no processo de reabilitação foi a de «arquitectura de estaleiro», ou seja, uma parte do projecto de arquitectura e especialidades é desenvolvido durante o próprio processo de construção propriamente dito. Uma metodologia que consideramos a mais adequada às reabilitações com estas características. Assim, à medida, que o trabalho em estaleiro revelada as reais condições de conservação dos materiais e sistemas construtivos (rebocos apodrecidos, estruturas de madeira parcialmente apodrecidas, fissuras nas paredes), as decisões quanto aos elementos a substituir ou eventuais reforços foram sendo tomadas. Em muitas situações, estas decisões implicaram uma reorientação do projecto de arquitectura. Esta metodologia exige ao arquitecto muito tempo dentro do estaleiro e uma boa coordenação com as restantes especialidades e artes. Foi também uma oportunidade de formação para vários membros da equipa de projecto que, deste modo, puderam assimilar as noções básicas do sistema construtivo da casa portuense, identificar patologias e testar soluções.
A filosofia de intervenção baseou-se na contenção da intervenção, procurando manter e preservar a integridade do edifício. Assim, na fachada principal as caixilharias novas foram desenhadas conforme o original, excepto nas situações em que houve a necessidade de se criar novos vãos. A rua apresenta uma certa harmonia e uma escala composta por prédios de várias épocas que resulta num equilíbrio bastante apreciável. Do lado da Rua da Vitória, a fachada montada em socalcos confere uma identidade urbana forte que demarca de uma forma decisiva o perfil da rua. Ora, a nossa intenção foi precisamente a evitar que a nossa intervenção perturbasse esse equilíbrio. Na medida em que se optou por manter a integridade do método construtivo e prolongar ao máximo a vida útil dos materiais existentes, mais do que a adopção de novas técnicas, preferimos recorrer a técnicas tradicionais na recuperação destes bens. Assim, podemos dizer cerca de 70% do imóvel original foi preservado, sendo que os 30% remanescentes resultam da necessidade de modernização das infraestruturas e criação de novas instalações sanitárias. No interior a intervenção criou condições de salubridade e iluminação que tinham sido comprometidas por intervenções informais, avulso, que ocorreram ao longo das últimas décadas.
FICHA TÉCNICA: Designação: Taipas Ι Código: P0092 Ι Ano: 2017 Ι Local: Porto Ι Arquitectura[Coordenação]:Adriana Floret Ι Especialidades: Jerónimo Botelho, N4W8 Lda e Avelino Santos Ι Empreiteiro: 3M2P Construção e Reabilitação de Edifícios, Lda Ι Fotografia: João Morgado.
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